28 de junho de 2013

À favor da cura da desonestidade intelectual (se existir)

Neste ponto, pensei que nem precisaria mais comentar sobre a questão da "cura gay", oposta por boa parte da população... infelizmente, não pelos motivos certos. A crítica supérflua da mídia, incluindo a perpetuação do apelido "cura gay", permitiu que o deputado Marco Feliciano se aproveitasse das brechas causadas pelo entendimento superficial do assunto para tentar justificar o PDC 234/2011. Boas respostas ao vídeo já foram enviadas, mas, quanto maior for o esclarecimento, melhor.

No vídeo, Feliciano começa apontando a desonestidade intelectual da mídia ao colocar o projeto como "cura gay", simplificando o debate. Aliás, como o próprio Feliciano sugere, vamos manter algo em mente: desonestidade intelectual. Podemos considerar que se trata de uma distorção proposital de fatos ou argumentos de modo a facilitar a contra-argumentação. Exemplos são usar truques de retórica para tornar um argumento falho convincente, distorcer informações, e formar relações entre fatos sem ligação alguma.

Quer tentar adivinhar de onde eu peguei esses exemplos, aliás? Veremos...

Em algo todos podemos concordar: a intervenção da mídia na questão foi em grande parte mais prejudicial do que benéfica. Afinal, o que o PDC 234/2011 realmente propõe? Em primeiro lugar, visa eliminar o parágrafo único do artigo 3º da resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia:

Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Logo, Feliciano conclui, o projeto não está propondo a cura gay, na verdade ele está querendo retirar a resolução que proíbe a cura gay, o que é totalmente diferente.

... Espera, o quê!?

Eu sei que lógica é difícil para algumas pessoas. Há quem tenha mais inclinação para as artes, para as humanidades e outros tópicos, mas espero que todos saibam que a negação da negação é uma afirmação. Se eu nego a sentença "Você não pode curar ou tratar a homossexualidade", a sentença resultante é, necessariamente, "Você pode curar ou tratar a homossexualidade". Ah, e existe um bom motivo para esse parágrafo estar aí: a homossexualidade não é uma doença, mas já foi considerada uma. Assim, foi importante esclarecer esse aspecto com a resolução e ainda é importante para evitar preconceitos.

Mas tudo bem, não vamos crucificar o cara por uma pequena falha de coerência, não é? Até porque ele se justifica logo em seguida: o parágrafo está proibindo o psicólogo de propor uma forma de tratamento da homossexualidade, o que é um absurdo, porque encerra o debate científico, impede as pessoas de estudarem por conta própria um fenômeno complexo e ainda em discussão...

Conseguiu perceber o artifício sutil e absolutamente desonesto dessa linha de raciocínio? O parágrafo trata especificamente de "eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades", mas nosso querido Feliciano ignora a parte do "eventos e serviços" para dar a entender que qualquer discussão e estudo sobre o assunto está proibido.

"Ah, mas isso pode ser interpretado de maneira errada", alguém pode dizer. Como assim interpretado de maneira errada? É só ler, gente, não tem nada de ambíguo aí. Não tem como confundir ausência de eventos e serviços com ausência de discussão no âmbito científico, ausência de artigos, palestras acadêmicas ou o que for. Aliás, outra coisa para se gravar: "discussão no âmbito científico".

E não me diga que você vai repetir pela milésima vez o argumento batido e completamente equivocado de que não existe gene gay, portanto, ninguém nasce gay? Poxa, Feliciano, pensei que você estivesse um pouco (mas nem tanto) acima disso. Bem, vou apenas deixar este texto aqui. Agora precisamos voltar à discussão que nos interessa no momento.

O próximo ponto do PDC 234/2011 é o artigo 4º:

Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

Novamente, Feliciano afirma que é um absurdo limitar os profissionais dessa maneira, apela ao direito de expressão e comete o exato mesmo deslize ao associar a ausência de pronunciamentos públicos com ausência total de pronunciamento. É bom aproveitarmos para fazer uma breve revisão de como a ciência funciona.

Tudo na ciência segue o método científico, que consiste (resumindo e simplificando ao máximo) em observações, formulação de hipóteses a partir das observações, elaborações de teorias a partir da validação e sistematização das hipóteses, e novas observações. Mas só isso não basta; afinal, quem diz o que é válido/científico e o que não é? Aí entra a revisão por pares (peer review), um dos principais mecanismos de autorregulação da ciência. Após todo esse processo, tem-se uma teoria científica bem consolidada, mas que sempre pode ser contestada no futuro.

Só as teorias bem consolidadas vão ao público; antes disso, elas ainda estão em debate, mas no âmbito científico. Se você alguma vez já se perguntou por que um professor/pesquisador não ensina aos alunos suas próprias teorias, aí vai o principal motivo. Também explica por que certas coisas, sejam elas fáceis ou difíceis de entender, você só encontra fuçando materiais de referência para sua tese de doutorado e não em um livro didático.

Finalmente, com tudo isso considerado, entendemos o real problema por trás do projeto: simplesmente não existe nenhum tratamento para a homossexualidade que funcione e seja devidamente documentado e verificado. Sugerir que um profissional possa divulgar e disponibilizar ao público sua própria cura miraculosa é uma irresponsabilidade tremenda e total negligência ao método científico. O assunto pode e deve ser discutido, mas em âmbito científico.

Que tal uma analogia com uma doença (obviamente lembrando que homossexualidade não é uma doença, é apenas uma comparação)?

Você é à favor da cura universal do câncer? Creio que sim; ao menos, as pessoas devem ter o direito de receber a cura. Mas imagine que as únicas pessoas que alegam isso são médicos ou curandeiros que divulgaram evidências anedóticas de seus tratamentos em livros ou artigos pouco confiáveis. Mais ainda: após investigações, constata-se que os métodos propostos não só não funcionam como podem piorar o quadro do paciente. E aí, você acha que o Conselho Federal de Medicina é malvado e tirânico por impedir que médicos apliquem tal tratamento? Os profissionais devem ter o direito de arriscar a vida de seus pacientes com procedimentos duvidosos?

Não é a minha opinião, a opinião do Marco Feliciano ou a opinião de ninguém que dá ou tira credibilidade de uma teoria científica; é a própria ciência, através do método científico. Se a ciência atesta contra a existência de um tratamento efetivo da homossexualidade, então por que raios a decisão de um grupo de políticos ou mesmo da opinião popular deve se sobrepor a isso?

E, por último: a resolução do Conselho Federal de Psicologia se aplica a... adivinha quem? Isso mesmo, psicólogos. Você pode oferecer tratamento da homossexualidade como serviço religioso, esotérico ou o que quer que seja, mas não como psicólogo. O que um psicólogo deve fazer é realizar um aconselhamento psicológico visando a adequação da pessoa à sociedade, independentemente de gênero, raça ou orientação sexual. A homossexualidade não é o problema e, se for, não há solução, assim como o fato de você pertencer a uma minoria étnica oprimida.

Fiquem com alguns bons vídeos relevantes ao assunto (devo ir acrescentando mais com o tempo):



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