Os indivíduos formam a coletividade ou a coletividade forma os indivíduos? A realidade molda a subjetividade ou a subjetividade molda a realidade? O que precede o quê? É nesse embalo filosófico que vamos dar uma olhada em um assunto que não costuma ser comumente vinculado à reflexão analítica: o romance. Mais especificamente, o romance em animes e mangás, através dos mangás Akuma de Sourou e Pietà. Este post faz parte de uma tag coletiva sobre Akuma de Sourou formada por blogs de anime/mangá, cujos links estarão ao final do post.
Quando se observa como o romance é retratado em animes e mangás (é possível estender a discussão a outras mídias, mas por enquanto vamos nos limitar a essas), podemos perceber uma variedade de categorias em relação à temática e público-alvo:
- O típico romance shounen, em que geralmente o protagonista passa pela transição de garoto para homem através de vários obstáculos para provar seu valor à amada, em uma espécie de novela de cavalaria dos tempos modernos. Exemplos: I"s, Ane Doki.
- O romance em obras na qual o protagonista está cercado por um verdadeiro harém, repleto de garotas com interesse nele, mas raramente há progressão real nos relacionamentos, seja pelo foco em outros aspectos da trama ou porque o protagonista é um bundão mesmo. Exemplos: Sora no Otoshimono, Kämpfer.
- O típico romance shoujo, na qual a protagonista e/ou seu interesse romântico lutam contra empecilhos de todas as espécies para consolidar seu romance, o que geralmente envolve processos de descoberta pessoal. Exemplos: Koko ni Iru yo, Akuma de Sourou (eu sei que existem exemplos clássicos que seriam mais adequados, mas admito não ser um connoisseur de shoujo como o Eiti).
- E vários outros. Vale lembrar que pode haver intersecções entre as categorias.
Neste post, pretendo usar um critério mais amplo de classificação, levando em conta a seguinte problematização: em um romance ou qualquer forma de elo forte entre duas pessoas, as ações e personalidades de ambos são responsáveis pela dinâmica do relacionamento ou o relacionamento transcende a individualidade dos envolvidos e os influencia de modo muito mais forte do que eles o influenciam? Bem, já que estamos falando de entretenimento, não precisamos debater qual é a resposta mais exata, mas sim a mais interessante.
Dependendo da abordagem da obra, temos os "romances românticos", que colocam ênfase no relacionamento e como ele afeta as personagens; e os "romances realistas", que lidam com o romance como uma extensão do psicológico das personagens. Os termos romântico e realista não denotam níveis de maturidade ou superioridade, são apenas referências às escolas Romântica e Realista na literatura por apresentarem essas características citadas.
Akuma de Sourou (esquerda), por Takanashi Mitsuba, publicado pela Bessatsu Margaret. Pietà (direita), por Haruno Nanae, publicado pela Young You.
Pietà trata de Rio e Sahoko, duas garotas sem aparentemente nada em comum, mas compartilham cicatrizes invisíveis. Rio, análoga a Takeru, é uma bad girl charmosa e cruel, mas ao mesmo tempo carente. Já Sahoko parece ser uma garota exemplar e sociável, mas por algum motivo não mora com os pais, evita falar sobre o passado e tem um certo distanciamento emocional das amigas. Seja por destino, acaso ou uma sintonia misteriosa, ambas acabam atraindo e curando uma à outra.
Logo pela natureza do conflito central é possível ver onde está o foco das duas obras. Akuma de Sourou traz uma variedade de barreiras ao relacionamento, mas a mais prevalecente e difícil de superar é o próprio relacionamento, que por si só é problemático devido às circunstâncias. Em Pietà, o conflito central é a instabilidade emocional de Rio e seus problemas familiares — fatores externos ao relacionamento e independentes dele.
O desenvolvimento dos relacionamentos também é um ponto importante. É verdade que Pietà é muito mais curto do que Akuma de Sourou, mas não precisaria ser mais longo. Isso porque, enquanto Akuma de Sourou toma seu tempo para estabelecer os sentimentos de Kayano e Takeru até eles tomarem a iniciativa de inaugurar o romance propriamente dito, Pietà mal distingue claramente os estágios de desconhecimento total, interesse, amizade e romance. Em Pietà, o relacionamento flui de maneira mais sóbria, pois considera que são apenas duas pessoas que se "encaixam" bem, nada mais e nada menos.
Comparado às dúvidas, medos e sofrimento que Kayano deve enfrentar em prol do relacionamento, o romance entre Rio e Sahoko parece até bobo, mas a diferença é justamente devido às abordagens distintas. Kayano luta para estabelecer seu papel no relacionamento entre Takeru e ela como amante, não irmã ou amiga ou substituta. Em contrapartida, uma fala de Sahoko demonstra total desinteresse às arbitrariedades dos relacionamentos humanos, em que afirma não se importar com rótulos e apenas deseja estar ao lado de Rio, seja como amiga, uma figura materna ou amante. Adicionalmente, a rápida evolução do relacionamento é explicada pelo apego emocional de Rio.
Vamos agora aos personagens secundários, que em Akuma de Sourou podem ser agrupados em dois grandes blocos: os que apoiam o romance e os que se opõem a ele. Isso não quer dizer que ninguém se importa com os protagonistas em si, mas a priori eles não são o problema. Afinal, uma pessoa é sua rival no amor porque há colisão de interesses românticos, não necessariamente porque ela não gosta de você. Se o relacionamento amoroso de Akuma de Sourou não existisse, praticamente não haveria conflito algum no mangá.
Isso é um contraste violento em relação a Pietà, que não por acaso não impõe complicação alguma à existência do relacionamento. Até poderia, mas isso prejudicaria a mensagem da obra, que diz respeito ao psicológico individual das personagens e não na dinâmica do romance — que, como demonstrado anteriormente, é de fato bem simples e sem grandes conflitos. Logo, os personagens secundários de Pietà possuem papel de apoio ou oposição direta às protagonistas, que pode ou não dizer respeito ao relacionamento (tanto é que os personagens danosos a Rio sequer se importam com o relacionamento, enquanto uma das personagens de apoio argumenta contra o relacionamento visando o bem de Rio).
Após essa breve análise, a pergunta natural é: qual vence? Bem, gostaria de dizer que cada um é bom ao seu próprio modo, mas o principal problema com Akuma de Sourou é que ele é tão didático na aplicação de suas fórmulas que pouco ou nada surpreende o leitor já familiar com esse tipo de enredo. Até mesmo o conflito central acaba não causando tanto impacto ou empatia no leitor porque o mangá precisa manter o relacionamento vivo e presente através de vários conflitos paralelos.
Em todo arco de Akuma de Sourou, há um conflito principal; por exemplo, um rival. Cada capítulo desse arco vai resolver um mini-conflito apresentado anteriormente e introduzir um novo ao final, até o clímax, no qual o relacionamento entre os protagonistas será fortalecido. Conhecendo essa estrutura, é possível pular capítulos ou até mesmo arcos inteiros, porque as pistas para entender o desenrolar anterior estão no próprio capítulo ou arco atual. A conclusão disso é que há várias situações desnecessárias à trama.
Pode parecer injusto comparar Pietà e Akuma de Sourou em termos de concisão, uma vez que Pietà é necessariamente mais enxuto, mas não deixa de ser mais eficiente em apresentar o enredo. Por isso mesmo, nunca perde de vista seus objetivos primários: os personagens e seus dramas internos. Trata-se de um mangá bem simples, quase minimalista, o que se revela tanto nos traços quanto na duração mínima de 2 volumes e na progressão da estória, e é isso que o destaca.
Mas será que Pietà também não é um exemplo perfeitamente didático de romance realista? E isso não é um indício de que o romance realista "puro" é mais interessante do que o romântico "puro"? Se sim, pode-se dizer que o romance realista parece mais interessante porque a variante romântica é mais comum? Não sei, mas fica aberta a discussão. O importante é notar que toda obra tem seus méritos próprios, e não há motivos para rejeitar uma obra apenas por apresentar determinadas características.
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